O custo silencioso de carregar o peso do mundo nas costas
E o que o Titanic, a criatividade e as dores que não cabem nos exames têm a ver com isso.
No último sábado, minhas amigas me chamaram pra ver Titanic. Sim, o mesmo Titanic que eu já assisti mais vezes do que consigo contar, e que ainda assim me arranca lágrimas, risos envergonhados com a breguice do amor romântico, e claro, o surto coletivo sobre a porta que definitivamente comportaria dois. Confesso: era um convite irresistível. Estava no auge da TPM, querendo me derreter um pouco, sentir demais, me entregar ao clichê.
Mas dessa vez, não foi o Jack que mais prendeu minha atenção. Não foi a música. Não foi o final.
Foi uma cena que eu sequer lembrava que existia. Uma conversa entre Rose e sua mãe. A mãe, inflexível, acusa a filha de ser egoísta por não aceitar o casamento com o pretendente rico que salvaria o nome da família. Rose, em desespero, só consegue dizer: “É tudo tão injusto!”. Ao que a mãe responde com frieza cortante:
“É claro que é injusto. Somos mulheres. Nossas escolhas nunca são fáceis.”
Essa frase me atravessou com a mesma força do navio em rota de colisão com aquele iceberg. Senti o peso da identificacão antes mesmo de conseguir nomeá-la. Como se, por alguns segundos, eu também fosse Rose. Como se, de algum modo, eu já tivesse vivido algo muito parecido.

Quando o jogo vira e você precisa ser adulta antes do tempo
Em algum ponto dos meus vinte e poucos anos, o jogo da vida resolveu mudar as regras sem aviso. Ninguém me obrigou a casar com um milionário babaca, mas, de repente, me vi tendo que abrir mão de sonhos e caminhos que seriam naturais pra uma jovem da minha idade, em nome de algo maior. Em nome de não decepcionar. Em nome de manter tudo de pé. De ser quem segura as pontas.
Fui chamada, silenciosamente, a ocupar o papel da salvadora. Aquela que precisa dar conta. Aquela que tem que crescer antes da hora, assumir responsabilidades que não são suas, fazer escolhas que sacrificam sua leveza e espontaneidade, pra não ser vista como egoísta.
Durante oito anos, eu desempenhei esse papel com perfeição. Mas a conta chegou.
Ela veio vestida de cansaço, de tristeza difícil de explicar, de uma sensação constante de que a vida estava passando por mim sem que eu a vivesse de verdade. E quando a mente tenta negar, o corpo é quem começa a gritar.
Os primeiros gritos de socorro
O primeiro alarme veio com meu ciclo menstrual. Irregularidades. Acne. Aumento na queda de cabelo. Oscilações de humor intensas. Uma bagunça interna que se manifestava externamente. O diagnóstico foi: Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP).
Pra quem não conhece, a SOP é uma condição endócrina e hormonal que afeta milhares de mulheres. Está ligada a ciclos menstruais irregulares, dificuldade para ovular, acne severa, ganho de peso, queda de cabelo e, em muitos casos, infertilidade. E mais: tem uma forte relação com o estresse e com os níveis de cortisol mantidos em alta por tempo demais.
Comecei a praticar mais atividade física, a cuidar da alimentação, fiz o que estava ao meu alcance para controlar os sintomas sem precisar me entupir de hormonios que só mascaram o problema. Mas o corpo ainda queria dizer mais.
Vieram as dores lombares. Achei que era do treino. Talvez um movimento errado. Talvez postura. Mas os remédios não faziam efeito. E a dor começou a se espalhar pelo lado esquerdo do corpo. Chegou um ponto em que eu mal conseguia levantar da cama.
Hérnia de disco? Sim. Mas leve. Nada que justificasse aquela dor incapacitante. Fiz todos os exames. Não havia nada grave, nenhum reumatismo, nenhuma doença óssea. Estava "limpa". Mas sentia dor como se estivesse em ruínas.
Seria coisa apenas da minha cabeça?
Pois bem.
O diagnóstico silencioso
Depois de dois anos peregrinando entre médicos, exames, especialistas, medicações e muita dor, veio o segundo diagnóstico: fibromialgia.
Uma doença crônica que se manifesta principalmente através de dor generalizada, fadiga extrema, distúrbios do sono, ansiedade e depressão. Uma doença que, segundo a Sociedade Brasileira de Reumatologia, afeta de 2 a 3% da população mundial e, em sua maioria esmagadora, mulheres.
Ela é difícil de diagnosticar porque não aparece em exames. Ela se manifesta como um acúmulo de dores e tensões que, muitas vezes, tem origem emocional.
Carga demais. Pressão demais. Peso demais.
O diagnóstico mais doloroso, no entanto, veio no consultório da minha terapeuta:
“Larissa, você não percebe? Faz anos que carrega o peso do mundo nas costas. Como não iria doer?”

O peso invisível que é colocado sobre as mulheres
Isso me fez pensar no quanto somos condicionadas a suportar. A dar conta. A colocar os outros em primeiro lugar. A calar nossos desejos em nome do bem maior. A não decepcionar.
Desde pequenas, somos ensinadas a ser prestativas, boazinhas, compreensivas. A guerreira que segura tudo. A mulher-maravilha que não falha.
Mas a que custo?
O que acontece quando passamos tempo demais dizendo sim pro mundo e não pra nós mesmas?
Nos dizem que buscar nossos sonhos pode ser egoísmo. Que pensar em si é falta de empatia. Que querer mais é ingratidão. E assim seguimos nos culpando por desejar, por querer leveza, por querer existir de outra forma.
Mas ser "egoísta", nesse contexto, é um ato de resistência. É um modo de se salvar.
Carregar o mundo nas costas — e quase sempre silenciosamente — é um fardo que recai com desproporção sobre as mulheres. Diversos estudos têm revelado que esse peso é tão real quanto invisível. Segundo pesquisa do McKinsey & LeanIn, 42 % das mulheres relataram sentir-se exaustas no trabalho constantemente, contra 35 % dos homens.
Já um levantamento global do Future Forum vai ainda mais longe: 46 % das mulheres sofrem de burnout, versus 37 % dos homens. Isso se reflete nos lares: mulheres fazem em média cinco ou mais horas por dia de tarefas domésticas e cuidados familiares — o equivalente a um meio expediente extra.
Em outro estudo do instituto Nuffield Health, mulheres apresentaram 23 % mais chance de ter desequilíbrio entre vida pessoal e profissional e 45 % mais risco de estresse ocupacional, em comparação aos homens. No Sul da África, pesquisa da Deloitte identificou que 53 % das mulheres sentem seu estresse aumentando, e quase metade está em burnout .
E como isso interfere nos nossos ciclos, produtividade e criatividade?
O peso da pressão constante, aliado à sobrecarga física e emocional, perturba diretamente os nossos ritmos internos, afetando a sincronização entre corpo e mente:
Ciclos menstruais desregulados: o estresse crônico é reconhecido por órgãos como a Sociedade Brasileira de Endocrinologia como gatilho para desequilíbrios hormonais — como SOP — que impactam humor, energia e clareza mental.
Criatividade minguada: ao trabalhar cansada, ansiosa ou emocionalmente drenada, o cérebro perde plasticidade e capacidade de criar e inovar.
Produtividade em queda: a fadiga constante reduz a concentração, atrasos se tornam frequentes — e, muitas vezes, somos as primeiras a nos culpar.
Falando da fibromialgia, condição que afeta 80 a 96 % mulheres segundo meta-análises, a explicação vai além dos fatores biológicos: ela está interligada à amplificação de respostas ao estresse e traumas acumulados.
O que era um corpo que informava adequadamente acaba se tornando terreno frágil quando pressionado por responsabilidades incessantes e padrões inalcançáveis.
Por que isso demanda atenção?
Essa complexa teia de cobranças e dores — invisíveis, mas reais — interfere de forma direta e profunda em como nos relacionamos conosco e com o mundo. Por isso, é urgente reconhecer:
Que não é culpa nossa por sentir dor, cansaço e dúvidas: é reação natural a imposições externas.
A importância de pausar o ciclo de autossacrifício, afastando o eterno “resgate” emocional que adoenta.
Que dizer “não” não é egoísmo, mas autocuidado fundamental — o gesto que protege nossa saúde física, mental, criatividade e bem-estar.
O que minguou em mim
No exato dia em que essa newsletter chega até você, a Lua entra em sua fase minguante: 18 de junho, às 16h19.
Esse é um tempo de encerramentos, de deixar ir o que já não nutre, de se recolher para observar o que ficou acumulado no fundo do corpo e da alma. No ciclo menstrual, esse momento se conecta à fase lútea tardia, também chamada de fase pré-menstrual — quando o estrogênio e a progesterona começam a cair drasticamente. É o ponto mais sensível do nosso mês.
O corpo já não tem energia para agradar, performar ou ultrapassar limites. Ele pede pausa. Ele pede escuta.

Criativamente, é uma fase em que o externo silencia para que o interno fale. Não é hora de forçar soluções, mas de digerir experiências, reconhecer os pesos acumulados e escutar o que ficou abafado no meio da rotina.
“Para muitas mulheres, o caminho criativo começa no momento em que elas aceitam a verdade da própria dor, da própria negação, da própria história — e param de tentar corresponder à imagem da mulher idealizada.”
— Maureen Murdock, autora de The Heroine’s Journey
Essa é a potência da fase minguante: ela nos obriga a reconhecer o que sangra silenciosamente. E sangra.
Em mim, sangrou a autoestima. A ideia de que eu poderia ser algo além do que esperavam de mim. Sangrou a minha criatividade, que antes se expressava sem medo e se calou sob o peso de exigências, cobranças e frustrações. Sangrou também o desejo de sonhar — porque sonhar exige espaço interno, e por muito tempo, eu não tinha espaço algum. Só tarefas. Responsabilidades. Culpa.
Tudo isso foi minguando lentamente. E, como numa maré baixa, um dia me dei conta de que havia mais ausência do que presença dentro de mim.
E o que acontece quando esse estado se prolonga?
Segundo um estudo da Universidade de Stanford, o burnout crônico não só reduz a criatividade como altera a forma como o cérebro processa emoções — nos tornando mais negativamente autocentradas, menos capazes de ver possibilidades novas. O estresse afeta diretamente o funcionamento do córtex pré-frontal, área responsável pela tomada de decisão, planejamento e criação.
É como tentar pintar uma tela com a luz apagada.
Essa é a face menos falada do burnout: não é só cansaço. É a perda da alegria de criar. Da confiança de que algo bom pode sair de dentro de você. É o que acontece quando você passa tempo demais tentando ser funcional para todo mundo — e se esquece de ser gentil com quem você é.
E nesse ponto, a pergunta que fica é: o que em você está minguando?
O que já não tem espaço para crescer porque está sufocado pelas expectativas que você nunca escolheu?
O que precisa ser deixado no fundo do mar para que a maré possa subir de novo?
Recuperar essas partes em mim tem sido como voltar lentamente para casa. Tem exigido reaprender a respeitar meus ritmos, dizer não sem culpa, e me permitir existir sem precisar provar meu valor o tempo todo.
Às vezes, essa recuperação vem em formas simples — uma manhã de escrita sem cobrança, um elogio que deixo entrar, uma decisão tomada por mim e para mim.
Outras vezes, é mais difícil: envolve abrir mão de relações que me sobrecarregavam, de rotinas que não me pertencem, de máscaras que me protegiam, mas me afastavam de mim.
Criar, nesse contexto, virou uma forma de me lembrar de quem sou, mesmo quando tudo me empurra para o esquecimento. E isso também é parte do ciclo criativo: permitir que partes de nós morram, para que outras possam florescer.
Se você também sente que algo em você está minguando, talvez essa seja a hora de escutar. Não para fazer mais. Mas para se permitir fazer menos,com mais verdade.
Quando o navio está afundando, ficar não é uma opção
Titanic terminou. E eu chorei. Mas dessa vez, não por Jack.
Chorei por mim. Pela menina que carregou o que não era dela. Que tentou salvar todo mundo. Que se perdeu um pouco no caminho.
Voltei a pensar na Rose — não só na Rose apaixonada, mas na Rose oprimida, sufocada, presa em uma vida que não escolheu.
“Nossas escolhas nunca são fáceis”.
E não são mesmo.
Eu não precisei me casar com um homem rico para salvar o nome da família, mas precisei abrir mão dos meus sonhos muito cedo. Precisei crescer antes do tempo. Assumir responsabilidades que não eram minhas. Vestir o papel de salvadora e esconder a dor pra não incomodar.
Hoje, olhando pra minha trajetória com a distância que só o tempo dá, entendo que — como Rose — eu precisei abandonar um navio que já estava afundando. Precisei saltar mesmo sem saber nadar direito.
Porque continuar ali era morrer um pouco todos os dias.
O problema não é “sermos sensíveis”.
É que ainda vivemos em sistemas que normalizam o excesso, o silêncio e a dor das mulheres como parte do pacote.
Somos chamadas de frágeis, dramáticas, egoístas… quando tudo que estamos tentando é sobreviver com um mínimo de dignidade emocional.
Talvez o maior ato de coragem seja mesmo esse: escolher outro caminho.
Mesmo que isso custe o conforto do conhecido. Mesmo que isso nos obrigue a desapegar da expectativa de quem esperavam que fôssemos.

Ao fazer essa escolha de pular do navio, esbarrei com outras mulheres que dividiram experiências parecidas — cada uma com sua história, suas particularidades, suas batalhas.
Foi nelas que encontrei o apoio necessário para finalmente compartilhar essa carga que antes era só minha.
Escrever essa edição da newsletter tirou um pouco do peso das minhas costas. E vai tirar ainda mais se esse texto — sobre essa dor que levei tanto tempo pra entender e conseguir nomear — ajudar alguém a não se sentir sozinha.
Quanto à Rose… ela pode ter perdido o Jack ao sobreviver ao naufrágio.
Mas ela ganhou algo ainda mais precioso: a chance de construir uma nova vida.
Com liberdade. Com escolhas. Com coragem.
E eu?
A cada palavra escrita aqui, também estou aprendendo a sobreviver à minha maneira.
Honrando minhas cicatrizes. Relembrando quem sou.
E abrindo espaço — pouco a pouco — para sonhar de novo.
Lari, seu texto me levou para tantos lugares diferentes enquanto lia! Parecia que estava conversando num café com você. Me senti muito abraçada e compreendida. Partilho do mesmo sentimento que expôs, inclusive, foi tema da minha terapia recentemente. Espero que a gente consiga continuar abraçando nossos quereres, mesmo quando fica difícil. ❤️
Amiga, que texto poderosíssimo.
Juro que passarei um bom tempo digerindo tudo o que você trouxe nessa edição. Me identifiquei com tanta coisa e agora sinto um mix embolado de sentimentos que apenas uma boa terapia é capaz de ajudar a desenroscar.
Sim, a vida é sempre no nível hard para quem é mulher. E é incrível como, mesmo nos achando pessoas feministas e que brigam por nossos direitos, terminamos por carregar muito mais do que deveríamos, de trouxa, mesmo.
Ainda não aprendemos a deixar incomodar.